terça-feira, 31 de agosto de 2010

Sobre homens que as fazem rir


“O que escala elevados montes ri-se de todas as tragédias da cena e da vida.” Friedrich Nietzsche, em Assim Falou Zaratrusta
Procurei no Google pela expressão “humor equals freedom” (humor significa liberdade). Nenhum resultado. O inverso também não existe na Internet. Em páginas brasileiras, só há relação entre humor e liberdade de expressão. Uma pena. O senso de humor guarda a chave central dos relacionamentos amorosos, desde os primeiros instantes da sedução até a morte do parceiro após décadas de convivência.
Não é sem razão que as mulheres valorizam o bom humor nos homens. É comum ouvir algo como: “Eu gosto de homens que me fazem rir”. Ou ainda: “Eu amo ver ele sorrindo para mim”. Essa simples confissão esconde algumas coisas interessantes. O que elas dizem aponta menos para a comicidade e mais para a noção de liberdade, transcendência e plasticidade dos homens – em vez do lúdico, é o aspecto lúcido que importa. Não se trata de homens palhaços ou maliciosamente inteligentes (piadistas e sarristas de plantão), mas de homens sábios, que conseguem transitar entre diferentes universos e linguagens, sem muitas fixações e prisões. Simples assim: se o humor vem de um automatismo ou condicionamento, ele repele; se brota da liberdade, é absolutamente irresistível.
Vejamos, por exemplo, o seguinte diálogo entre Joãozinho e sua mãe:
– Mãe, me dá um relógio por favor.
– Pra que se o Natal tá longe?
– Ah, mãe! Sabe aquela minha namorada argentina, a Juanita?
– Sim…
– Então… Um dia eu pedi pra ela tirá a sainha e ela tirô. Pedi pra ela tirá a blusinha, ela tirô. Pedi pra ela tira a calcinha, ela tirô e ficou peladinha. Aí ela disse: “E a ora?”. Aí eu não tinha relógio pra dizer que horas eram!
Joãozinho representa a mente ampla, que vê através dos significados convencionais. A graça está no livre transitar entre mundos semânticos que leva a uma interpretação diferente da fala da menina. Humor e plasticidade surgem da mente livre, enquanto tédio e solidez escorrem da mente fixada incapaz de vôos semióticos.
Uma mulher se sente naturalmente atraída por um homem na medida em que ele demonstra desenvoltura e desembaraço diante de qualquer situação – dos múltiplos discursos de um bate-papo a uma resolução de um conflito familiar. A todo instante, ela analisa o comportamento masculino usando um critério essencial: “Será que esse homem saberá lidar com minhas infinitas manifestações, ondas e energias? Será ele homem o suficiente para vir me chamar para dançar?”. Eis por que o rapaz embaraçado e hesitante sempre sai em desvantagem. Eis também por que o arquétipo do malandro (travesso, malicioso, sacana) exerce tanto fascínio no imaginário feminino.
O louco estava no hospício, escrevendo uma carta, e o psiquiatra, que estava perto perguntou:
– Você está escrevendo para quem?
– Para mim mesmo.
– E o que a carta diz?
– Não sei, ainda não recebi!
Nesta clássica piada, a loucura ilustra a sabedoria de incorporar diferentes perspectivas. Ele age ora como o remetente-escritor, ora como o destinatário-leitor. Sentimos que a loucura é engraçada e de fato soltamos até gargalhadas quando presenciamos situações de alternância abrupta de perspectivas e de quebra de solidez. Rimos quando presenciamos a liberdade! É como se as ações livres provocassem o riso como um súbito reconhecimento de nossa condição natural – desobstruída, leve, alegre e relaxada. A gargalhada seria uma espécie de concordância espontânea com nossa liberdade inata: “Sim, sim, assim é, assim é!”.
A condição de possibilidade do humor é a liberdade semântica, na primeira piada, e a liberdade de perspectivas, na segunda. Anote aí, Google: good humor equals freedom. Ou seja, estar livre de uma perspectiva, apto para transitar entre várias, é o ponto de encontro entre bom humor e liberdade. Trocar de mundos é como atravessar paredes, purificar negatividades e cortar qualquer fixação que possa surgir. Ao perceber esse poder mágico de dissolver substancialidades, Milan Kundera escreveu: “Realmente rir é esquecer”.
Um homem capaz disso, de apenas sorrir e fazer sorrir, automaticamente passa no crivo feminino. Ele é o homem que estará presente, impassível, olhando nos olhos dela e fazendo seu mundo se abrir em meio a TPMs, dores de parto, choros de bebê, crises financeiras, mortes, divórcios, traumas. Por ser livre, ele pratica o autêntico bom humor, a arte do esquecimento (Borges pensava o esquecimento como sendo “a tênue substância de que é feito o universo”, algo que Shakespeare escreveu em relação aos sonhos). Ao sorrir para todos, ele convida cada um a seguir dançando com ele. Ao praticar o esquecimento ativo, ele sabiamente retira a solidez dos fenômenos e desenha espaço para novas danças. O contrário também se aplica: realmente esquecer é rir…
Ora, o mau humor é justamente a percepção equivocada de uma realidade sólida ao redor, uma imobilidade que desconhece o verbo dançar. De ombros caídos, olhar divagante, coração trancado, o mau humor é incapaz de amor. Uma memória automatizada nos consome e não há mais lugar para o esquecimento. Sentimo-nos em um ambiente aprisionante, sem muitas opções, sem capacidade de contato e interesse genuíno pelos outros, autocentrados em nosso drama pessoal. Neste momento, podemos levantar um pouco a cabeça e olhar para além de nossas complicações. Podemos resgatar a arte de rirmos de nós mesmos. Em A Construção Social da Realidade, Berger e Luckmann afirmam que neste momento enfim começamos a acessar nossa liberdade.
“Por um momento vê-mo-nos realmente como fantoches. De repente, porém, percebemos uma diferença entre o teatro de bonecos e nosso próprio drama. Ao contrário dos bonecos, temos a possibilidade de interromper nossos movimentos, olhando para o alto e divisando o mecanismo que nos moveu. Este ato constitui o primeiro passo para a liberdade.” (Berger; Luckmann, 1966)
sorriso liberador (outra expressão inexistente em português no Google) não se encontra nas gracinhas de um Mr. Bean. É fruto de uma espécie de tristeza aberta, uma ternura e autenticidade baseadas no simples fato de que existimos e batemos cabeça ao tentarmos desesperadamente amar uns aos outros. Ao contrário de Mr. Bean, é a figura de um Patch Adams ou de um Charles Chaplin que nos comove, que nos lembra de nossa natureza solta e brincalhona, cuja alegria é inseparável da melancolia que abre nosso coração.
Ironicamente, a origem do bom humor é o mau humor e sua insustentabilidade: só conseguimos permanecer no estado de distimia se não levarmos o mau humor até o fim, se ficarmos em cima do muro, hesitando em sentir nossa dor totalmente. O processo de fuga da angústia gera uma anestesia, um fechamento, uma contração cuja saída está justamente em sentir toda a nossa dor direto na raiz, sem medo, sem justificativas ou curativos. Mau humor vivido é mau humor curado. Levado à exaustão, o mau humor termina por entediar-se consigo mesmo, dá um tiro no próprio pé, e a contração inicial desagua em uma abertura leve a qualquer fenômeno, em um bom humor além do cinismo, sem bases, que não aponta para ninguém. Sorrimos com todos, sem oposição ou contraste.
Sorrimos pois estamos delicadamente rindo de nós mesmos. Sorrimos sabendo que algum dia comprovaremos enfim que a ironia cósmica suprema está no fato de que nós mesmos somos a grande piada e de que a superação do sofrimento só será possível quando nos reconhecermos como tal. Afinal, uma boa piada se coloca acima de tudo (“perco o amigo, mas não perco a piada”) – é verdadeiramente transcendental. No caminho espiritual, nós vivemos para honrar a piada que somos!
A piada e o bom humor nos livram de nossa contração, da identificação obsessiva com as identidades e personagens que atuamos. O humor nos libera de nós mesmos ao sustentar a distância necessária entre nossas identidades luminosas e a espacialidade construtora de onde brotam. Para quem duvida dessa conexão entre bom humor e espiritualidade (grifos meus):
Transcendence restores humor. Spirit restores humor. Suddenly, smiling returns. Too many representatives from too many movements – even many good movements, such as feminism, environmentalism, meditation, spiritual studies – seem to lack humor altogether. In other words, they lack lightness, they lack a distance from themselves, a distance from the ego and its grim game of forcing others to conform to its contours. [...] In the presence of a psychic-level yogi, you tend to feel power. In the presence of a subtle-level saint, you tend to feel great peace. In the presence of a causal-level sage, you tend to feel massive equanimity (calm composure). In the presence of a nondual siddha – these are often very ordinary people – you simply find yourself smiling a lot. (Ken Wilber, One Taste, 1999)
“O humor, que é a superconsciência ironizando sobre a contradição, sabendo a contradição contraditória, dominando a contradição, também é uma das nossas especialidades. Aqueles que vivem um problema desse gênero fazem dele um jogo, mas um jogo sério. O humor é a evasão da má consciência pela liberdade; é ele que pacifica a insolúvel contradição; o humor preservava-nos do desespero quando sofríamos e agora entretem-nos nessa vivacidade que é também um dos traços que distingue a alma judaica.” (Vladimir Jankélévitch)
Uma mulher que procura um homem que a faça rir é Shakti, energia dinâmica, buscando por Shiva, consciência liberta. Uma mulher que admira um homem sorrindo, na verdade, adora o quanto ele está além das situações mundanas, em uma posição de deleite e verdadeira ludicidade. Quanto mais radiante o feminino, mais espiritualmente malandro terá de ser o masculino. Quanto mais brilho e beleza vierem dela, mais solto e livre ele terá de ser para atrai-la. Como uma vez aprendi com um professor de samba de gafieira, “o homem traz o gingado e a mulher absolutamente todo o resto”.
Seja na malícia dele ou no sorriso carinhoso dela, o senso de humor transpassa a busca de ambos por liberdade e amor. Caminho e meta, estratégia preliminar e ação iluminada final, o bom humor nasce dos olhos que espiaram por detrás do palco, da mente que contempla mundos e seres como um emaranhado de sonhos sem solidez alguma, um grande filme cuja comédia abarca a tragédia. Porque o universo não é uma pergunta a ser respondida nem um código a ser compreendido, mas uma piada que eventualmente rirá de si mesma.

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